A estatal federal Codevasf encerrou contratos no valor de mais de R$ 200 milhões com a empreiteira Engefort desde que o jornal Folha de S.Paulo iniciou, em abril deste ano, uma série de reportagens sobre a destinação de emendas parlamentares à empresa, que é a campeã nas licitações de pavimentação no governo Jair Bolsonaro (PL).
As reportagens mostraram que a construtora, que já obteve contratos que superam R$ 1 bilhão, domina as concorrências dessa área na Codesvaf e, em diferentes licitações, participou sozinha ou na companhia de uma empresa de fachada registrada em nome do irmão de seus sócios.
A Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) é uma estatal federal entregue por Bolsonaro ao controle do centrão em troca de apoio político.
Turbinada por bilhões de reais em emendas parlamentares no atual governo, a Codevasf mudou sua vocação histórica de promover projetos de irrigação no semiárido para se transformar em entregadora de obras de pavimentação e máquinas até em regiões metropolitanas.
A Codevasf nega que a decisão de encerrar contratos com a Engefort tenha ligação com os questionamentos citados nas reportagens e afirma que não houve irregularidades nas licitações.
No atual modelo de obras de pavimentação da Codevasf, a aquisição dos serviços acontece por meio de uma forma simplificada de licitação –pregão eletrônico, que ocorre online. Ele leva aos chamados contratos guarda-chuvas, que têm validade para toda a extensão de estados e regiões.
O contrato guarda-chuva, no jargão técnico, é denominado Sistema de Registro de Preços (SRP) ou ata de registro de preços. A partir do preço fixo nele estabelecido, são feitos contratos mais específicos para cada obra, com a definição dos locais exatos de execução das pavimentações.
A Folha de S.Paulo analisou a documentação de 99 licitações de pavimentação realizadas pela Codevasf em 2021. Desse total, a Engefort, sediada no interior do Maranhão, em Imperatriz (713 km de São Luís), venceu 53 concorrências.
A Engefort ganhou licitações com valores quase o dobro maiores que os de concorrências em estados vizinhos vencidas por outras empresas. A reportagem encontrou discrepâncias de 87% no Tocantins, 71% na Bahia e 31% em Minas Gerais.
Os contratos guarda-chuvas decorrentes das licitações vencidas pela Engefort somavam R$ 1,03 bilhão até o início da publicação das reportagens pela Folha de S.Paulo, em abril.
Após as revelações, quatro contratos da empreiteira, no total de R$ 230,6 milhões, foram anulados desde maio.
Foi revogado o maior contrato que havia sido obtido pela Engefort em 2021, no valor de R$ 62 milhões, referente a serviços de pavimentação no Amapá.
O pregão que originou esse contrato teve a participação apenas da empreiteira e de sua empresa de fachada, a Construtora Del, como a Folha de S.Paulo revelou em abril.
Na ocasião, o lance da Engefort foi com desconto de apenas um centésimo por cento (0,01%), mas, como o sistema eletrônico da Codevasf não admite tal valor ínfimo, a empresa foi obrigada a aumentar o desconto, ainda que minimamente, para 12 centésimos por cento (0,12%).
Outro grande contrato da Engefort encerrado há cerca de um mês, no valor de R$ 58,5 milhões, teve licitação com ofertas dela e de apenas outra empresa.
Nesse pregão, para pavimentação com blocos de concreto no Pará, a Engefort participou somente com a empreiteira Construita, sediada em Itamaraju (BA), que fica a 40 horas (ou 2.600 km) da capital paraense.
A Construita deu o melhor lance, mas foi desclassificada sob a alegação de não ter apresentado atestados técnicos suficientes para a obra.
Quanto às pavimentações do Amapá e do Pará, a Codevasf não explicou à reportagem os motivos das anulações, limitando-se a afirmar que após a assinatura dos contratos guarda-chuvas não foram feitos os contratos mais específicos para cada obra.
“A ata de registro de preços não gerou contratações, por essa razão a licitação foi revogada”, afirma a estatal, sem informar porém as razões pelas quais tais contratações não ocorreram.
Um terceiro contrato resultante de pregão com baixa competitividade, agora encerrado, é o de asfaltamento e recapeamento na região metropolitana do Recife, no total de R$ 61,5 milhões. Além da Engefort, só outras duas empresas participaram.
Segundo a Codevasf, “a empresa vencedora [Engefort] alegou não ter condições de executar o contrato”. “A rescisão foi amigável”, completa.
O contrato então foi repassado para a segunda colocada na licitação de 2021, a empreiteira Liga Engenharia. Essa empresa possui relações com a família do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), ex-lider do governo Bolsonaro no Senado.
Mais recentemente, o congressista foi o relator da chamada PEC Kamikaze, considerada crucial para os planos eleitorais do presidente em 2022.
Um dos sócios da Liga Engenharia, Pedro Garcez de Souza, é cunhado de um sobrinho do senador.
No primeiro biênio da gestão Bolsonaro (2019/2020), quando era líder do governo, Bezerra Coelho foi responsável pela destinação de R$ 330 milhões à regional da Codevasf em Pernambuco, grande parte por meio de emendas parlamentares, como a Folha de S.Paulo revelou no fim de 2021.
A Codevasf ainda anulou um contrato da Engefort no valor de R$ 48,6 milhões para pavimentação com blocos de concreto na região da 2ª Superintendência da Codevasf, sediada em Bom Jesus da Lapa (BA).
Na situação baiana a estatal também afirma que houve rescisão amigável pelo fato de a Engefort ter alegado não ter condições de executar o contrato.
Nessa licitação a Engefort não deu o melhor lance, mas acabou levando o contrato após a desclassificação de concorrentes.
A empreiteira é alvo de uma apuração do TCU (Tribunal de Contas da União) iniciada a partir das reportagens da Folha de S.Paulo. O processo começou após representação assinada pelo senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) e pelos deputados federais Tabata Amaral (PSB-SP) e Felipe Rigoni (UniãoBrasil-ES).
OUTRO LADO
A Codevasf nega que as anulações de contratos da Engefort tenham ligação com os questionamentos feitos pela reportagem. Diz que as licitações seguiram a lei e são abertas à livre participação de empresas de todo o país.
Quanto à ligação da família do senador Fernando Bezerra Coelho com o sócio da empreiteira Liga Engenharia, a Codevasf afirma que “relações sociais ou familiares eventualmente existentes entre sócios de empresas participantes de pregões e terceiros são desconhecidas e não integram o rol de critérios de classificação ou desclassificação”.
A Engefort também afirma cumprir a lei e que “todos os procedimentos foram adotados em estrita observância aos pressupostos legais, inexistindo qualquer relação com atos de terceiros” e “não compactua com quaisquer ilicitudes”.
Quanto à apuração da Folha de S.Paulo sobre a empresa de fachada, a Engefort afirma que “não responde por outras empresas e não pode ser responsabilizada pela participação destas em certames públicos”.
O senador Bezerra Coelho e a Liga Engenharia foram procurados pela reportagem, mas não se manifestaram.