Historiadores apontam elitismo na Proclamação da República

Proclamação: declarar alguma coisa oficialmente ou com ênfase. República: coisa pública ou do povo. Todo dia 15 de novembro são lembradas no Brasil duas palavras – Proclamação e República – que marcam o início de um novo regime político em 1889, que é o vigente nos dias atuais. Mas, entre a oficialização de uma ideia e a aplicação efetiva dela há sempre uma distância. Por isso, historiadores reforçam que, apesar de anunciada como governo do povo, a República começou de forma excludente ao privilegiar poucos setores sociais. 

No fim do século 19 e início do 20, pobres, negros, indígenas e mulheres foram deixados à margem do projeto de uma sociedade dita moderna. 

“Foi um projeto da elite agrária cafeeira e dos militares que voltaram vitoriosos da Guerra do Paraguai. A junção dessas elites, que acionam o Marechal Deodoro para a Proclamação da República, acaba excluindo boa parte da população brasileira”, explica a historiadora Camilla Fogaça, integrante do Coletivo Historiadores Negros Tereza de Benguela. 

“A concepção de República era elitista e liderada por setores militares e positivistas influenciados pelo pensamento científico europeu do final do século XIX. Ela primava pela exclusão das parcelas pobres e dos negros. Nesse conceito de sociedade não caberia aos mestiços e aos negros ocuparem espaços de poder. Não é um projeto de Estado com uma democratização ampla”, reforça o historiador Vantuil Pereira, professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEPP-DH/UFRJ). 

Forças unidas

A Proclamação da República foi, portanto, um processo liderado por três forças: uma parcela do Exército, fazendeiros do oeste paulista e representantes das classes médias urbanas. Desde a década de 1860, o Império passava por mudanças na estrutura política, econômica e social que o enfraqueciam, como a guerra do Paraguai, o movimento abolicionista, fundação de partidos republicanos e fortalecimento do positivismo. 

O líder militar do movimento de 1889 foi o Marechal Deodoro da Fonseca, que antes era monarquista. Com a vitória republicana, Dom Pedro II e a família imperial foram obrigadas a se exilar na Europa. Apesar da hegemonia branca e masculina, houve protagonismo de um homem negro, o jornalista e vereador José do Patrocínio, que tomou a iniciativa de ler uma moção pública abolindo a monarquia na Câmara Municipal do Rio de Janeiro no dia 15 de novembro. 

Mas, no que diz respeito ao centro das decisões políticas posteriores, predominaram as mesmas configurações raciais e de gênero que norteavam os rumos da monarquia no período anterior. A historiadora Camilla Fogaça destaca, por exemplo, a exclusão das mulheres nessa nova ordem sociopolítica. 

“Dois anos depois da Proclamação da República, temos a Constituição de 1891. E ela já começa excluindo a participação das mulheres no voto. Esse voto só vai ser conquistado na década de 30 na Era Vargas. E assim mesmo há todo um processo de jogar a figura feminina para o ambiente familiar e isolar a participação política. Como se ela não pudesse integrar outro lugar que não fosse dentro de casa e na posição de cuidado”, diz a historiadora. 

Outros mecanismos e leis ajudaram a hierarquizar os direitos políticos e civis nas primeiras décadas da República. 

“Uma série de instrumentos restritivos estava em curso. Exemplo é o código criminal que vai ser aprovado entre a República e o Império, que limitava a circulação urbana e criminalizava a vadiagem. Há também a questão da perseguição aos capoeiras. São processos restritivos e penais, que atingiam especialmente negros e pobres”, diz Vantuil Pereira. “A nova constituição limitava o direito de voto do analfabeto. E é bom lembrar que a parcela maior de analfabetos é de ex-escravizados. Então, aqueles que não eram alfabetizadas eram excluídos do sistema político”. 

Desafios atuais

Passados 134 anos de Proclamação da República, a data é vista como mais que uma celebração. É uma oportunidade para refletir sobre os desafios atuais para tornar o país mais democrático e diverso. 

“Primeiro, nós sabemos hoje que a maioria de pessoas presas encarceradas no Brasil são negras. O sistema de justiça tem que passar por uma transformação completa no sentido de ser não ser um sistema racista. Segundo, quando se fala em favela, favelado e violência, e na ação do estado sobre esses territórios, os mais atingidos são pessoas negras. Então, é preciso a gente ter um olhar muito claro do Estado de ter políticas públicas para essas populações. De habitação, saúde, moradia, uma concepção de segurança que não passa por uma lógica de controle. Terceiro, a gente precisa aprofundar um conjunto de políticas públicas de acesso e democratização do sistema de ensino. E quarto, ampliar a participação das pessoas negras nos espaços de poder no Brasil. São questões para a gente completar uma obra republicana nos motes de uma sociedade desenvolvida, civilizada e democrática”, finaliza Vantuil Pereira.