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Varsóvia
Sobrevivendo no Gueto
José Vitor Fontinele
“…Jamais teria coragem de executá-lo
preferia continuar tentando a sorte do
que perdê-la de vez.”
I De frente com o inimigo
Primeiro de setembro de 1939. Lembro-me bem dessa data e de cada
detalhe dos dias que a sucederam. Como o dia em que tentei fugir,
ingenuamente do gueto e deparei-me, ficando cara a cara ao cruzar uma rua, com dois soldados da SS, os quais passaram a fitar-me terrivelmente por alguns segundos e, a princípio, sem fazer gesto algum, com um olhar
aterrador, penetrador de alma, disse a mim mesmo – É o meu fim! – empacado, fiquei, esperando a Providência divina. Depois de alguns segundos, fui surpreendido por uma rasteira que veio por trás. Caído, o soldado que me lançou ao chão pôs o pé em cima do meu
peito e pressionou fortemente. Eu implorava para que parasse, pois estava me impedindo de respirar, parecia que minhas costelas estavam quebrando, enquanto os outros dois sorriam da minha condição, agonizante pensei “Agora são três, e a morte já inevitável que tanto tentei remediar chegou com todo o seu furor” – àquela altura minhas chances de sobrevivência encontravam-se em qualquer lugar menos ali -. Após ele retirar, senti uma sensação de alívio indescritível, parecia serem feitas de chumbo as botas do monstro, fui arrastando-me até uma parede próxima a qual serviu de encosto, e, tentando sofridamente me levantar, consegui, e eles observando.
II Escapando da morte
Um dos soldados aproximou-se eufórico, pegou-me pelos cabelos e me
lançou ao chão novamente, enquanto outro tomava distância do lugar em que eu me encontrava caído para atirar. Ao ver aquela arma apontada para mim, paralisado, vi uma luz forte e se intensificando em minha direção – era um jipe que parou em nossa frente, e, descendo, um soldado às pressas fez um comunicado urgente aos outros, os quais subiram no automóvel parecendo esquecer da minha existência – mais tarde, já recuperado daquela tarde, fiquei sabendo que eles tinham sido convocados para conter um tumulto que se originou por causa de comida – pessoas brigavam por pães e batatas, pois o que tinha a disposição não era o suficiente para todos. Foi uma carnificina. Dezenas de poloneses mortos pelas rajadas das metralhadoras alemãs. -Quanto a quem sobreviveu ao massacre, melhor seria ter morrido ali mesmo, porque, os que não foram mortos no episódio, foram deportados para grandes campos de trabalhos forçados e extermínio como Aushwitz.
III Resquícios de esperanças
Depois do ocorrido, ainda permaneci deitado ali por alguns segundos.
Então, vendo a calmaria momentânea que me pairava, aproveitei para fugir dali não para longe, como de fato todos desejavam porque estávamos isolados num gueto em Varsóvia, cercado por fortificações nazistas e sob o jugo deles, o que tornava inviável sair dali, a não ser para deportações, e, na melhor das hipóteses, o gueto ainda era um “paraíso”.
Mesmo com tudo isso que relatado até aqui, leitores, ainda existia em
algum lugar em mim um resquício de esperança. Talvez fosse a coisa que me manteve vivo até agora, depois de tantas empreitadas atrás de comida ou tentando descobrir algum meio de sair daquele lugar e abruptamente era pego pela SS – tinha me acostumado, tinha me tornado destemido, posto a arriscar minha vida para sobreviver e sair para reencontrar minha família.
IV Andando às escondidas
As ruas estavam infestadas de soldados transitando a pé com suas
armas sempre a mostra, alguns motorizados. Sempre sérios. Pareciam saídos de um laboratório que os criou exclusivamente para essa função: controlar o gueto. Não tinha como andar pelas ruas sem cruzar com soldados, o que dificultava saidinhas, mas eu, menino astuto, que já estava calejado de tanto ser pego e levar coronhadas de metralhadora, ainda conseguia passar despercebido.
Ao ver uma porta de uma casa, cuja fachada havia uma estrela de David, adentrei, era de manhã cedo, de imediato perguntei “Há alguém aí!?”, e como ninguém respondeu, fui me encorajando a vasculhar toda a casa para ver se realmente era segura. Na cozinha, tinha uns pães e umas xícaras com chá ainda quente sobre a mesa. Chamou também a tenção, além da porta da frente escancarada, duas das cadeiras da cozinha estarem derrubadas e com elas um ursinho rosa. Presumi que naquela casa, naquela manhã, uma família havia sido levada à força para deportação pelos infames e sórdidos da SS para nunca mais voltarem.
Quando a noite chegou e com ela o meu plano de fuga alimentado pelo
medo de driblar toda a segurança e passar pela entrada, onde estariam
guardas de prontidão para me partirem ao meio com suas rajadas de
metralhadora, decidi abolir o plano e adiá-lo para a noite seguinte – jamais teria coragem de executá-lo, preferia continuar tentando a sorte do que perdê-la de vez.
V Alimento e libertação
A casa abandonada que eu havia achado ocasionalmente, tornou-se
ainda mais convidativa depois que descobrir um estoque de alimento que dava para algumas semanas, decerto, seus donos estavam racionando e de uma maneira bastante perspicaz, já que até nossa comida era controlada. Deveria ter alguns cooperadores, não sei. Não me interessava mais pensar nisso, e sim no sossego que eu teria escondido aqui, sem ter que correr riscos nas garras da SS, durante as próximas semanas.
Antes de encontrar esta residência judia, eu vivia num porão de uma
lojinha abandonada, depois que nossa casa no Gueto foi invadida e minha
família levada, enquanto eu encontrava-me ausente. Passei, então, a sair para caçar comida, tentar fugir ou ser torturado. Estava lutando para sobreviver, até que o exército soviético libertou o Gueto da opressão nazista.